O Último Charme: A Coragem de uma Despedida Consciente
- Edu Fontes

- há 6 dias
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Crônica sobre viver com dignidade e a decisão pela partida quando já não se tem vida digna. Inspirada na música Charme do Mundo, de Antônio Cícero, na versão original, com Marina Lima.

Há canções que são mais do que som e letra; são suspiros musicados, convites a parar e sentir o peso doce da existência. “Charme do Mundo”, de Antônio Cícero, é uma delas. Na voz serena e hipnótica de Marina Lima, a pergunta “Que charme tem o mundo?” soa menos como uma dúvida e mais como um exercício de contemplação. Um convite a listar, em segredo, os pequenos milagres que nos mantêm presos à vida.
Recentemente, deparei-me com um vídeo do próprio poeta declamando seus versos. Nele, Cícero não canta, mas entrega. Seus olhos fechados, suas mãos desenhando o ar, a voz um fio de emoção pura. Há uma leveza triste e uma verdade incontestável naquele instante. É a leveza de quem compreendeu o fardo e a beleza de estar vivo, e decidiu celebrá-los em verso. Aquele homem, imortalizado pela Academia Brasileira de Letras e pelas canções que marcaram gerações, carregava consigo uma serenidade que, hoje, entendemos como prenúncio.
Porque Antônio Cícero não foi imortal apenas por sua obra. Ele se tornou um farol de uma discussão necessária pela forma corajosa com que decidiu partir. Ao ser diagnosticado com Alzheimer, o exímio amante das manifestações da vida, o filósofo da palavra precisa, encarou de frente o mais brutal dos silêncios progressivos. E fez uma escolha que, na época, exigiu uma jornada transatlântica até a Suíça.
Testemunhar o apagamento de uma pessoa amada por uma doença degenerativa é algo de uma violência íntima indescritível. É assistir à dissolução do próprio ser, à corrosão de todas as memórias, amores e histórias que um dia fizeram aquele indivíduo único. Imagine ter a consciência de que você perderá, pedaço por pedaço, a consciência de si mesmo. Que navegará, sem remo e sem leme, para um oceano interno e sepulcral, onde nada mais fará sentido.
Foi esse limiar fatídico, a fronteira entre a razão e a escuridão, que Cícero se recusou a cruzar. Enquanto ele precisou travar sozinho essa batalha, ecos de mudança começam a surgir muito mais perto de nós. Na última quarta-feira (15 de outubro de 2025), o Uruguai fez história . O Senado do país aprovou, por ampla maioria, a Lei de Morte Digna, descriminalizando a eutanásia e tornando-se o primeiro país da América Latina a adotar a medida por meio de uma lei parlamentar .
A lei uruguaia, assim como a decisão de Cícero, é centrada na dignidade. Ela permite que maiores de idade, mentalmente aptos, em fase terminal de uma doença incurável ou que cause "sofrimento insuportável" e grave deterioração da qualidade de vida, possam solicitar o procedimento . O texto é rigoroso, exige múltiplas avaliações médicas e a confirmação por escrito da vontade do paciente . Não se trata de um convite à morte, mas do reconhecimento do direito a um fim de vida que respeite a integridade da pessoa.
A voz dessa mudança tem nome e rosto. Beatriz Gelós, de 71 anos, que convive com a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) há quase vinte anos, tornou-se um símbolo da causa. Antes da votação, ela, em sua cadeira de rodas, declarou: “Me daria uma paz incrível se fosse aprovada. É uma lei compassiva, muito humana” . E aos que se opõem, ela lança um desafio que cala fundo: “Vocês não têm ideia de como é viver assim” . Como Beatriz, Pablo Cánepa, de 39 anos, vítima de uma doença rara e incurável, pede lucidamente o fim de um calvário que já dura quatro anos .
A decisão de Cícero ecoa a pergunta central de sua canção. O "charme do mundo" reside justamente na liberdade, na lucidez, na capacidade de se maravilhar. Quando esse charme se esvai, substituído pelo medo e pela despersonalização, que dignidade nos resta impor? A aprovação da lei no Uruguai, apoiada por 62% da população , sugere que a sociedade começa a entender que a dignidade não é um conceito único, imposto a todos, mas uma experiência íntima.
Marina Lima, a irmã que deu voz à sua poesia, soube da decisão final de Antônio Cícero em uma ligação, às vésperas de sua partida. É de se imaginar a dor e, ao mesmo tempo, um estranho consolo. Não foi um adeus por acidente ou por um capricho da doença. Foi uma despedida consciente. Um último ato de amor por si mesmo e por todos que o amavam.
E é assim. A vida nos convida a lutar por dignidade enquanto estamos aqui. A partida de Antônio Cícero e a coragem de Beatriz Gelós no Uruguai nos lembram que, para alguns, a forma mais profunda de lutar por essa dignidade é poder escolher como e quando deixar o mundo. Escolher o momento de dizer que o charme, para ele, havia se findado.
Lutar por dignidade nesse mundo; deixá-lo com alguma dignidade. Esse, talvez, seja o derradeiro e mais difícil charme de todos os humanos.



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